Da Islândia, nossa colunista e curadora de literatura lusófona, Kátia Gerlach nos escreve suas experimentações acerca da poesia. A ideia desse pequeno especial partiu de uma conversa que tive com a Kátia durante um café da manhã na Escola de Artes Visuais do Parque Lage – EAV no Rio de Janeiro. A Kátia e eu falávamos da poesia da escritora catalã Dolors Miquel, especificamente de um poema da Dolors inspirado na poesia de Coleridge. De súbito a Kátia me fez pensar que seria interessante termos uma seção poética experimentalista na Philos acerca da poesia do Samuel. A conversa tomou rumos de erotismo, falamos da Hilda Hilst e da Casa Philos na Flip. Ao me enviar essa composição, a Kátia confessou que estava “apaixonada pelos poemas eróticos do E. E. Cummings”. No caminho entre Reykjavik e Miami, temos conversado acerca da nossa literatura e sobre uma edição especial inspirada na obra da Tarsila do Amaral. Esse é o primeiro texto da seção “Correspondências”, que assumo com a Kátia e que pretende – sem pretensões -, criar laços estreitos entre os artistas da nossa latinidade. Sem mais delongas, leiam “Fazer significar a poesia”, da amiga Kátia Gerlach:

  1. Retornar do deserto e trazer uma rosa verde para a vida em estado desadormecido.  Entregá-la a si, a alguém que se ama ou relega-la ao vaso de porcelana.  Ou à avó morta.  Trazer do sonho ingredientes adicionais como os meninos e as meninas a brincarem com peões a dois palmos do chão e a levitarem sobre os quadrados de giz.  Logo sentar-se no banco de um jardim botânico de rosas verdes com pétalas incólumes a meteorologia para merecer vento.
  2. A enguia à espera de rima no papel com a serpente simétrica, ambas prateadas e luminosas sobre os rochedos encobertos por musgos, ma-ci-ez, des-li-za-men-to, a-li-sar as superfícies reptilianas a ponto de escorregarem das mãos e exibirem desejos diferentes e eletrizantes; o cartógrafo deve explorar as conexões entre as enguias, as serpentes, as estrelas e, naturalmente, os mapas.
  3. Aceitar as radiações, todas as radiações.  Deixar-se atravessar por estas ondas como se feitas de tempo.  Compadecer-se do próprio desfalecimento pois tempo não se substancia em matéria e apenas as rosas verdes oferecem resistência.
  4. Face ao verso, perceber-se diminuto. Humanos nascendo aos milhões, morrendo aos milhões (quantos milhões de vezes não nascemos e morremos) e os gênios falantes apontam um verso idêntico em cada nascituro, em cada cadáver.  O cientista em seu sermão disse que a vida humana chegou ao limite.  O limite se desenrola como uma fita de seda conduzida pelo bico de um pitpit azul.
  5. Teimar em buscar o significado: no interior do corpo (a fundo nas vísceras), nas pontas dos dedos ou nos carrosséis oculares.  A poesia empertigada, faculta-lhe fazer-se arrogante, não requer estoicismo, é plena e superior, subjuga; homens, mulheres e animais a mercê da poesia mesmo que não o saibam, mesmo que não reconheçam os versos que os dominam, os sussurros dos djinns.
  6. A poesia como o espanto do sexo, os versos assumem corpos para vagarem entre outros corpos, confundem-se com os espíritos orgíacos, os versos a conterem e expulsarem os seis sentidos.  Dois corpos diante do oceano observam a disciplina militar das gaivotas.
  7. No parque de diversões, os brinquedos igualam-se aos versos, os graus de emoção medidos em números de um a quatro; o paradoxo de Zeno os aproxima e afasta.  A roda gigante a nível dois excita menos do que a montanha russa nível quatro.  Os dias felizes são de uma leveza lunar; eles foram ao Luna Park e não voltaram. Gravitar nível quatro ∞ (o infinito não é palavra ou número que existam).
  8. Os versos viabilizam voos aos famintos e aos anestesiados.  A mãe abortou e perdeu a visão, o pai saía com a espingarda para caçar rolinhas e o filho transformou-se em poeta; era isto ou espetar sapos com alfinetes e agulhas.  A poesia como processo explanatório, multidimensional, força motriz das folhas verdes ou brancas, um sopro, ou eu grito.
  9. As poesias: motores impulsionados pela taquicardia e pneumotórax. Intuir com estetoscópio. Quantificar os acontecimentos atribuídos a um poema por mais insólito que seja. Morar atrás de uma roda gigante ou sobre a Montanha Mágica.  A felicidade ajeita-se nas entrelinhas do soneto amoroso.

Kátia Bandeira de Mello-Gerlach (Rio de Janeiro, Brasil, 1980). Natural do Rio de Janeiro e radicada em Nova York, formou-se em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade de Londres e pela NYU School of Law, e professora de Direito na Fundação Getúlio Vargas. Corpo docente da Universidad Desconocida do Brooklyn sob a reitoria de Enrique Villa-Matas.  Publica no Jornal Rascunho. É curadora e membro do Conselho editorial permanente da Philos.

 


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